Trilogia da Febre: Posfácio, de Sidney Rocha

Cristhiano Aguiar
4 min readJul 29, 2020

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Crédito da foto: Anny Stone/Divulgação

Sidney Rocha, um dos mais importantes escritores brasileiros contemporâneos, vencedor do Prêmio Jabuti de contos, escreveu o Posfácio para meu Trilogia da Febre, ensaio que reproduzo aqui com muita felicidade e orgulho:

1.

Um escritor é muito mais suas apostas que qualquer outra coisa. Ele é sua hybris. Precisa se colocar à frente de tudo e desafiar os deuses do caos e da ordem. Quais sejam.

Cristhiano Aguiar encara certos medos dos quais fogem pelo Sul outros autores: a indexação. A taxação. Encara a palavra regionalismo, por exemplo, sem arrodeios ou maiores significações.

Este livro é parte dessa aposta. Não é sequer uma aposta alta, pois Cristhiano busca empreender um plano de obra mais amplo, não me parece preocupado com novidades tão antigas. Mas é uma aposta corajosa. Sem coragem, a pessoa pode até se tornar presidente de um país, mas nunca um escritor autêntico.

Então Cristhiano enfrenta sem tabus muitas camadas do mesmo bolo ou bolor — romântico, barroco, românico, gótico. As muitas peles do mesmo lobo — folclórica, religiosa, histórica, etnográfica até — , que coloca o conjunto de sua obra até aqui no bojo de certa tradição literária para a qual ele se requisita. Ou se autoexorciza. O leitor julgará melhor, se aceita a viagem para além destes contos. E aproveita mais se me desmoralizar, ao ler e não encontrar esses aspectos noutros livros dele, na literatura que tanto lhe pede.

2.

Os contos monstruosos deste livro são outros leviatãs. Fazem parte dessa escatologia, desse apocalipse ou metafísica religiosa que começou antes, bem antes, com um garoto ouvindo profecias em outras línguas de Baal, pela boca do avô, no centro do centro do mundo de um escritor, que é sua infância, na Campina Grande bramstokeana, vitoriana, gótica ou isaacasimoviana de todo lugar, hoje.

Claro, é uma literatura onde tudo é mais a imaginação, como nesta Febre. De lá para cá, Cristhiano tem escrito vários livros inaugurais, de pura invenção, que funcionam como incêndios, fátuos, por onde possa entrar o leitor aficionado por labaredas. Ou por miniaturas, por onde pode avançar nas paisagens interiores dos seus personagens.

Em um mundo tomado pelo medo, ele mostra neste livro personagens audazes e cheios de renúncias. Onde estão? No século 19? 20? 22? Este século tem deixado a todos perplexos demais até aqui e podem bem ser tempos “híbridos de movimento e fumaça”, numa frase que bem define nosso tempo e o tempo e atmosfera desta trilogia. Os psicanalistas podem encontrar melhores traços das feras e dos homens e das mulheres, e da rivalidade entre mães&filhas nos personagens de As onças. Os mais crentes e os historiadores e os sociólogos — quase digo cientistas políticos, mas essas são também entidades inventadas pelas academias — mas muitos deles vão encontrar profecias em curso e os biólogos lautreamonteanos encontrarão fácil-fácil relação com todas as pestes de ontem e de hoje nestas histórias. Ah, um ponto importante neste panorama da Febre: a ciência destes contos pode muito bem ser a da cloroquina, das fake sciences, quanto a ciência arcaica das primeiras ideias da abiogênese ou das teorias sobre eletricidade e magnetismo, que não demoram a entrar de novo em debate.

Cristhiano mostra, portanto, um mundo novo emprenhado pelo passado, uma alegoria, no bom sentido da palavra, para os tempos atuais.

3.

Um mundo todo a ser classificado. Percorrido. Devorado. Isto: nesta trilogia, a literatura de Cristhiano Aguiar dá conta de um mundo onde o tempo presente se mistura ao tempo futuro-passado em um país chamado Paraíba, ou Brasil, em 1930, ou de mil anos à frente. Revela um país onde é negada a subjetividade, o senso crítico, qualquer senso de gravidade. E um escritor impactado pelo mundo o mesmo de todo e sempre.

As agulhas de Cristhiano Aguiar testam a pele de uma criança-mensageira que tem logo cedo sua própria visão de fim do mundo, de resignação, enquanto inaugura vãs epifanias. A epiderme de uma médica e a filha tentando sobreviver em uma cidade invadida por feras. Alcança sensibilidade e sensação maníaca, coletiva, histérica, como a dos jogadores ou drogados, em um grupo de jovens que vaga pelo mundo perseguindo não sonhos, mas incêndios. Nos três momentos, Anda-luz, As onças e Firestater, Cristhiano, o mesmo autor de Na outra margem, o Leviatã, usa sua agulha, agora de bússola, para conduzir o leitor em viagens onde a imaginação, mais que a busca de estilos, mais que as indexações, é o ponto mais forte.

Não são contos-novelas para a taxonomia, repito.

Se um bichano sobre a mesa se transforma em um felino ou numa alcateia e depois num homem em chamas no pior dos mundos que é o seu quarto, diante do naco sólido de sua mais inclassificável solidão e resignação e abandono, e se com ele o leitor termina por se encontrar diante do espelho ao fechar este livro, é porque esses contos foram escritos para ser o que são: monstruosos. Monstruosamente humanos.

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Cristhiano Aguiar

Escritor. Professor do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Este perfil é exclusivo para divulgação dos meus livros =)